Gabriel Nunes tem 14 anos e ainda não sabe escrever o próprio nome. O menino mora no quilômetro 13 da Estrada do Belmonte, zona rural de Porto Velho, e não frequenta a escola desde 2017. Antes por falta de transporte escolar e atualmente devido a pandemia da Covid-19.
Para ajudar a comunidade onde vive, o sonho de Gabriel é ser médico. Mas hoje, antes de qualquer objetivo, apenas um prevalece: aprender a ler e escrever.
Segundo a mãe, Alcinete Nunes, de 34 anos, o menino deveria estar no 9° ano do Ensino Fundamental, mas ainda não completou o 5°.
A zona rural não é a única área afetada. No Médio Madeira, mais de 300 alunos sofreram com o dilema no transporte escolar. Já no Baixo Madeira foram mais de 1 mil prejudicados.
Na pandemia as aulas que anos antes eram diárias foram substituídas por atividades mensais. De acordo com a Secretaria Municipal de Educação (Semed), as escolas entregam as atividades impressas ou enviam pela internet — para as famílias que têm acesso — e acompanham “o desenvolvimento da aprendizagem dos estudantes através do retorno das atividades realizadas”.
Alguns pais ficam responsáveis por abastecer a embarcação — caso possuam — e atravessar o Rio Madeira em busca dessas atividades. Também precisam ajudar os filhos com as lições, mesmo que muitos não tenham concluído o ensino fundamental.
Dos distritos e linhas de Porto Velho afetados, os pais que tiveram condições financeiras acabaram se mudando com os filhos para a cidade. Mas muitos não tiveram essa oportunidade.
A família de Gabriel faz parte desse grupo. Com os pais desempregados o deslocamento é considerado quase impossível. A família sobrevive da venda de macaxeira que produz no sítio onde mora.
Consequências
Para a pós-doutora em educação, Rosângela Hilário, a pandemia tirou das crianças o que elas tinham de mais valioso: a esperança e sonhos de dias melhores.
“Elas estão com os pais em casa sem poder trabalhar. Elas estão sem o direito de ser criança”.
Outra consequência da ausência de aulas presenciais por tantos anos é a evasão escolar. Em 2017, de acordo com a Semed, 9.892 alunos estavam matriculados nas escolas da zona rural. Em 2021 o número caiu para 8.553.
De acordo com Rosângela Hilário, as consequências são horrendas, tanto do ponto de vista pedagógico, como da vida social. Já que as interações entre o corpo docente e o aluno fazem parte do processo de educação.
“A escola para a criança é mais do que um espaço onde estão “guardados” os saberes, as histórias. É um espaço onde ela vai aprender novas palavras para amplificar sua leitura de mundo”.
Segundo a educadora, a relação dessas crianças com a escola nunca mais será a mesma. Para que a situação seja remediada, é necessário um plano efetivo para recuperar a aprendizagem que envolva as crianças, as famílias e a comunidade.
“As famílias, a escola, as professoras estão fazendo o que é possível, mas nesse momento o possível não é suficiente”.
A Semed informou ao G1 que no segundo semestre de 2020, a secretaria orientou que as escolas elaborassem o currículo com o objetivo de priorizar as habilidades essenciais a serem desenvolvidas com os estudantes, conforme o bimestre e ano letivo de cada unidade.
A secretaria ainda informa que no início do ano letivo de 2021, foi implantado o Plano de Nivelamento do Currículo que consiste em recuperar a aprendizagem dos estudantes pautada nos objetos de conhecimento do ano escolar anterior.
Entenda cronologicamente o caso
Em 2018
Maio – A Polícia Federal (PF) deflagrou a Operação Ciranda. O objetivo era investigar e desarticular uma organização criminosa formada por servidores da Prefeitura de Porto Velho, suspeitos de fraudar licitações do transporte escolar terrestre e fluvial.
O grupo baseava o esquema no superfaturamento dos contratos de transporte fluvial e ao todo teria desviado mais de R$ 20 milhões dos cofres públicos.
Junho – Uma audiência pública foi realizada na 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Velho para debater o assunto. Ao fim, após concordância dos envolvidos, ficou determinado que a situação iria se normalizar em até 20 dias.
Julho – Os acordos não foram cumpridos e em 19 de julho outra audiência na mesma Vara definiu um novo calendário de funcionamento: em 30 de julho de 2018 o transporte terrestre e 6 de agosto do fluvial.
Outubro – Após 5 meses, 90% dos alunos da zona rural de Porto Velho retornaram às aulas. Dez dias depois o serviço de transporte fluvial foi paralisado novamente por falta de pagamento, segundo informações da empresa responsável enviadas para o G1.
Em 2019
Abril – A Semed chegou a informar que os alunos que dependiam do transporte terrestre conseguiram retornar às salas de aula. Já os que precisavam do funcionamento das voadeiras não chegaram a iniciar o ano letivo na data esperada.
Setembro – A Polícia Federal (PF) deflagrou a Operação Carrossel, como desdobramento da Operação Ciranda. No mesmo dia, a promotora de Educação do MP-RO pediu que o Estado intervisse no transporte terrestre da capital.
Outubro – Intervenção do Estado na Semed chegou ao fim após audiência que envolveu Juizado da Infância, MP e secretarias municipal e estadual de Educação.
Ao todo, desde 2016 o Ministério Público de Rondônia (MP-RO) ingressou com sete ações para tentar regularizar a situação do transporte escolar em Porto Velho.
Em 2020
Quando a situação parecia que seria solucionada, todas as escolas públicas e privadas do Brasil foram fechadas como forma de prevenir a disseminação da Covid-19.
Agosto – Todos os envolvidos nos trâmites judiciais sobre o transporte escolar em Porto Velho participaram de uma audiência virtual.
Setembro – O resultado do encontro foi a homologação do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que estabelece o dever do estado e município a oferecerem transporte, alimentação, materiais didáticos e assegurar o acesso à educação a todas as crianças das zonas rurais e ribeirinhas do município.