Ao menos 650 boletins de ocorrência por racismo, discriminação e preconceito foram registrados em Rondônia em quase cinco anos. Do total, 56% deles foram registrados pelas próprias vítimas. Os dados são da Polícia Civil e foram repassados ao G1 este mês via Lei de Acesso à Informação (LAI).
O quantitativo de registros extraídos do sistema também revela que:
- 51% dos envolvidos, autor ou vítima, são mulheres;
- A maioria dos envolvidos, também autor ou vítima, tem entre 21 e 40 anos;
- Pessoas com 81 anos ou mais são minoria entre os envolvidos;
- 17 pessoas foram consideradas suspeitas dos crimes;
- Apenas três menores de idade apontados como infratores; e
- 4 pessoas foram conduzidas à delegacia.
O levantamento se refere ao período de janeiro de 2015 a agosto de 2020. A Polícia Civil explicou que, na maioria das vezes, mesmo o registro sendo de racismo, o caso é tramitado na Justiça como injúria racial, o que possibilita pagamento de multa ou até prisão em flagrante. A corporação não pôde repassar dados exatos de pessoas presas, já que não tem acesso aos inquéritos.
Para Gabriel Souza, presidente da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil em Rondônia (OAB-RO), a quantidade de ocorrências registradas em quase cinco anos no estado está muito longe de refletir a realidade.
“No direito penal a gente sempre fala que existe uma zona de que tudo que é denunciado, tudo que é de fato levado ao conhecimento do Estado não é uma cifra de tudo que ocorre de crime no país. Seria até impossível a gente absolver essa demanda”, disse.
De acordo com o artigo 140, parágrafo 3º do Código Penal, injúria racial se refere a “ofensa à dignidade ou decoro utilizando palavra depreciativa referente a raça e cor com a intenção de ofender a honra da vítima”. O crime de racismo, previsto na Lei n. 7.716/1989, ocorre quando tal ofensa é contra um grupo de pessoas. Por exemplo, impedir que negros tenham acesso a estabelecimento comercial ou privado.
Após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em junho de 2019, atos preconceituosos contra homossexuais e transexuais também foram enquadrados no crime de racismo. “A Lei de Racismo é bastante ampla. Ela não recai sobre raça apenas, mas também por questões religiosas, de origem”, complementou Gabriel Souza.
A construção da consciência
“Até a gente criar uma consciência racial mesmo demora, pois tem pessoas que até hoje em dia têm dificuldade de se reconhecer como uma pessoa preta, de entender as dificuldades das pessoas pretas. Sabe qual o grande problema do racismo no nosso país? É porque, em sua grande maioria, não ocorre de forma explícita“, opinou o presidente da comissão da OAB.
A consciência de ser um homem preto começou a clarear na cabeça de Anderson Ferreira, de 25 anos, ainda muito cedo, mas infelizmente graças ao racismo. O jovem foi uma criança tímida e qualquer ofensa o fazia abaixar a cabeça. “Fora a questão de eu ser homossexual. Eu tinha um complexo de inferioridade muito grande”, contou ao G1.
“Na infância é difícil as crianças, os coleguinhas fazerem a gente esquecer que a gente é negro. A gente se conhece como negro de uma forma muito negativa. É bem cruel. A gente acha até engraçado por um tempo, mas na consciência não era nada engraçado e sim muito doloroso. A partir dos 8, 9 anos estava começando a entender o que era racismo, que era errado”, relembrou.
O contato com outras pessoas, o investimento em cursos e a conquista da independência o ajudaram a entender a essência do racismo – e em como combatê-lo. “Criei uma consciência política, do que eu precisava fazer, do que eu precisava denunciar e entendi que racismo era crime. Foi a partir de 2018 que fui entender que era algo muito grave”, disse.
Filho único e natural do Maranhão, o cantor, ator e professor Anderson Black, como é mais conhecido, foi criado desde sempre com a mãe (sua maior defensora) em Rondônia. Chegou a morar em outras cidades, como em São Paulo, onde trabalhou com teatro musical. Voltou ao Norte em 2018 para cuidar da mãe.
Anderson usou as redes sociais recentemente para denunciar agressões que sofreu por meio de comentários no Facebook. O ataque cibernético ocorreu em mensagens violentas postadas em uma foto de perfil do artista (relembre o caso). A polícia segue apurando o crime.
“Eu sempre percebo pelo olhar. Olhar de desconfiança, de soberba. E nós pretos percebemos isso na hora. Isso, para mim, machuca muito mais do que falar, verbalizar. Olhar estrutural, que vem desde a escravidão. O racismo está nisso, está nessa raiz de como as pessoas olham para gente, só pelo fato de sermos pretos”, declarou o artista.
Assim como o artista, o cantor Bruno Coutinho, de 36 anos, demorou para ter um entendimento concreto sobre o que era o racismo e de que também foi uma vítima. O crime se apresentava para ele de forma velada, mascarado pelas brincadeiras até então inocentes na roda de amigos.
“Às vezes ouvia um ‘pega lá a cerveja que tu é o único preto da mesa’ ou ‘vai lá fazer isso, escravo’. Então um ‘E aí, macaco’. Muitas pessoas ainda acham que são brincadeiras, que são apenas uma forma carinhosa de manifestar. No começo não me incomodava. Na fase da adolescência eu também tirava onda. Mas depois percebi que era algo pesado, por tudo o que tá acontecendo agora no Brasil”, disse.
“Comecei a despertar depois que conheci o outro lado, que não eram brincadeiras. Não era eu, Bruno, mas toda uma população, uma classe preta que sofre com brincadeiras que não são nem direcionadas a si, mas que acabam sendo atingidas por muitas vezes. É o momento em que me vejo como um preto ativista a lutar pelas razões certas e óbvias”, opinou o cantor.
Em meados de outubro, Bruno denunciou ter sido vítima de racismo por um policial militar dentro de um karaokê em Porto Velho (entenda aqui).O ataque aconteceu após ele chamar a mesa em que estava o homem para cantar, mas como ninguém respondeu, resolveu dar vez à mesa seguinte, o que teria enfurecido o PM.
O suposto agressor, então, apontou para a pele do cantor e disse que não era suja. Revoltado, Bruno expôs o caso nas redes sociais. O PM negou as acusações. O crime permanece sob investigação na corregedoria da corporação na capital.
“O racismo é a maior forma de ignorância que se pode ter, pois diante de tantas lutas que acontecem no mundo, as pessoas ainda se preocupam por você ser negro. Isso não deveria existir”, declarou Bruno.
A filha de Bruno, a pequena Maya Luz, de 6 anos, também o ajudou a conhecer mais o que seria o racismo. Por ela ser negra, ele tenta como pai ajudá-la a entender que está tudo bem em ser preta.
“Eu falo para ela: ‘você é uma preta linda, maravilha e você pode fazer tudo o que quiser na sua vida e falar que você tem orgulho de você’. Hoje ela busca personagens, personalidades que ela gosta que são pretas. E eu temo muito, pois hoje em dia as pessoas estão sem filtro, sem máscara, sem medo”, concluiu.
A pressão social por ser negra passou a permear Marcela Bonfim, de 38 anos, ainda na infância. Tanto que a fotógrafa e ativista cultural nascida no interior de São Paulo se dedica atualmente em contar histórias das famílias negras da Amazônia por meio das lentes.
A paulista chegou a Porto Velho em 2010 para conseguir um emprego na área de economia, sua primeira formação. Ela contou que andava pela cidade e era perguntada se sua origem era barbadiana, povo negro caribenho que chegou na capital no começo do século XX para a construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré.
“Não sou rondoniense, mas sou rondoniana. Aquela que chegou para ficar. Chegando aqui me deparei com uma cidade bastante curiosa a meu respeito. E nós temos na nossa formação escolar informações sobre famílias tradicionais grandes, os pioneiros. E para mim foi uma quebra bastante significativa, pois aqui tem sim negro”, disse.
A fotógrafa disse que conheceu algumas famílias tradicionais barbadianas. Porém, ficou sabendo que a diversidade negra em Porto Velho era elevada graças aos ciclos econômicos que a capital passou. Com um entendimento muito mais claro de que há sim pretos na Amazônia, para Marcela, o negro no Brasil não se reconhece por resquícios históricos, ainda mais quando se envolve a miscigenação.
“Já passei por situações de racismo, mas eu não sabia dizer que era racismo. Hoje, fotografar a Amazônia negra é simplesmente trazer à tona esses processos para que eles possam ser debatidos de uma forma digna. Eu trabalho com a dignificação dessas imagens. Eu hoje estou do lado de trás na fotografia, mas estou sempre do lado da frente sendo alvo. Estou falando de uma forma de dignificar a minha própria pele, o meu povo. O Dia da Consciência Negra é um para celebrar que estamos vivos“, declarou Marcela.